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Retrospectiva Internacional: Krzysztof Kieslowski
Apresentação
Monografia
Filmes da Mostra
DRAMATURGIA DA REALIDADE
(fragmento de monografia)
KRZYSZTOF KIESLOWSKI
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Uma realidade rica, magnífica, incomensurável, ou
nada se repete, ou não se pode refazer as tomadas.
Nós não temos de nos preocupar com seu desenvolvimento,
ela continuará a nos abastecer diariamente
com novas tomadas extraordinárias. É
justamente a realidade – e isto não é um paradoxo
– que é o ponto de partida para um documentário.
Basta somente acreditar nela desde o começo, em
sua dramaturgia, nesta realidade.
André Bazin escreveu que às vezes o cinema não
encontra estímulo algum nas inovações tecnológicas
– quando não se trata do tamanho da tela
ou das cores da imagem, que são decisivas quanto
ao desenvolvimento de seus meios de
expressão, e quando o mero fato de que movimento
ou som pararam de fascinar – o cinema
passa a remeter à literatura. Ele não se referia a
um tema ou personagens do filme – ele queria
dizer a linguagem, assim como os padrões estruturais
e dramatúrgicos.
O documentário, já esgotado e destruído por sua
linguagem, deve chegar ao real, e encontrar nele
dramaturgia, ação e estilo. Deve criar uma nova
linguagem resultante de um registro da realidade
mais preciso do que o existente até agora. A
questão aqui é dar um passo, o que será uma
conseqüência de todos os manifestos escritos
por documentaristas, uma conseqüência da afirmação
de Flaherty de que a câmera é uma ferramenta
de criação.
Um elemento de ação, surpresa, clímax – tão
importantes na dramaturgia clássica; um elemento
de suspense e não-deslindamento de fios
desordenados – tão significativos na dramaturgia
contemporânea – todos esses elementos não
foram inventados, mas constituem uma tentativa
de imitar (sob vários pontos de vista) a realidade.
A questão é parar de imitá-la e fingir, e assumi-la
como ela é. Só com sua falta de pontos culminantes,
sua ordem e confusão simultâneas – já temos
a mais moderna e confiável estrutura. Além do
documentário, não há outro método que permita
registrar essa realidade. O documentário deve
explorar a fundo essa possibilidade, e tirar partido
de sua exclusividade. Esta é sua chance.
Com base na dramaturgia do real pedi a algumas
pessoas – um estudante do último ano de história,
um soldador e um balconista – para escrever exatamente
todas as ações desempenhadas durante
um dia. Nenhum diálogo, pensamento, estado de
espírito, recordação ou sonho foram lembrados.
Apenas eventos que pudessem ser vistos ou ouvidos.
Todos os textos eram roteiros fascinantes.
Estamos acostumados a dizer que a vida é um
roteiro pronto, mas apenas folhas de papel escritas
comprovam isso claramente. Eu não quero
dizer que esses roteiros serão realizados (de qualquer
forma, isso não seria possível, por razões técnicas).
Por isso é que esse postulado se aproxima
da tendência comum ao segundo ano da escola de
cinema de colocar uma câmera na esquina de
uma rua e filmar o trânsito, por exemplo por uma
hora, quando o autor no ideal de seu conceito
deveria ir beber uma cerveja.
Alguns cineastas rebeldes chegaram perto de aplicar
esse método, apresentando filmes de 8 horas
sobre um homem dormindo, ou filmes de 10 horas
sobre uma criança dormindo (já que as crianças
devem dormir mais) em festivais. Apesar do absurdo
artístico dessas tentativas (que até poderiam
ser úteis para a medicina), em nada relativas ao
real, esses filmes são de certa forma educativos. No
final, as pessoas que conseguiram assisti-los por
algum tempo se entusiasmaram quando o ho
mem resmungou, e a tensão atingiu seu ápice
quando ele meneou a cabeça. Esta longa digressão
é só para lembrar o fato de que a importância dramática
e dramatúrgica de qualquer evento deve ser
avaliada apenas em seu próprio contexto. Deve-se
ficar bastante atento a esse fato, quando se pensa
em filmar uma realidade sobre a qual não seremos
capazes de inventar nem um evento grande nem
um pequeno, e quando a concordância, cronologia
e relações entre eventos serão reais e impossíveis
de se mudar livremente.
Os exemplos apresentados anteriormente são
absurdos, é claro, já que nos filmes em questão a
autoria está limitada à câmera. O filme é feito
pela câmera, e então por uma máquina de revelação,
uma copiadora etc. Uma máquina é o
autor. É possível que essa seja a conclusão final
derivada da teoria da dramaturgia do real, mas
não é o caso de estabelecer conclusões definitivas,
mas razoáveis.
A lenta invasão dos meios de comunicação de
massa transforma inevitavelmente a atenção do
espectador. A natureza da percepção muda. O
criador da cultura na próxima era, a cultura pósalfabética,
Marshall McLuhan, assinala que o
desenvolvimento da mídia de massa vai levar ao
declínio total da comunicação impressa. A visão
de McLuhan – que é mais um técnico do que um
humanista – de videotecas e aparelhos periféricos
de TV – é na verdade uma visão do mundo, onde a
palavra impressa simplesmente não será necessária.
Provavelmente McLuhan exagera – ele não
leva em conta a integração da cultura humana e
sua continuidade – a invenção da TV, da mesma
forma que a da imprensa no passado – vai revolucionar
a percepção, mas não mudará a continuidade
da cultura e sua natureza.
A arte contemporânea mais e mais freqüentemente
usa meios audiovisuais – que iniciam a
mudança na maneira de pensar. Começamos a
pensar em termos de foto, som e edição. As inclinações
profissionais dos diretores de hoje se tornarão
as inclinações da humanidade. Então essas
inclinações se tornarão regra.
Apesar disso, não acredito que as histórias em
quadrinhos substituirão os livros. Afinal, a
impressão, que com sua invenção determinou o
início da literatura, não substituiu os elementos
existentes na cultura hoje conhecida como
audiovisual, como o balé, o teatro, a música e a
dança. Apenas sua hierarquia de importância
mudará. Mas mesmo esta tese claramente óbvia
exige que tomemos decisões específicas.
A época em questão é um momento oportuno
para o documentário, que conduz a conclusões
tiradas dos elementos dramatúrgicos contidos
na realidade. E até mesmo os profissionais terão
o mesmo equipamento de um amador – como
hoje todo mundo pode comprar uma caneta dos
restos usados por Huxley – mas o filme continuará
a ser feito por artistas.
No filme postulado, o autor continuará a ser o mais
importante. Ele descobre o mundo para nós e para
si mesmo. “Assim que começa o filme, não se sabe
qual é a essência de seu assunto. É o filme, ele próprio,
que nos ajuda a penetrar no tema, a compreender
seu sentido, a ver os fios que o ligam”. (Richard
Leacock). “Estar no lugar certo na hora certa, compreender
o que deveria acontecer, o que é preciso
fotografar no instante ou como isso acontece, ser
flexível e receptivo, para fotografar o indispensável...
A individualidade do realizador aparece de
maneira bem mais forte na escolha do acontecimento
e no seu método de expressão que na sua
influência sobre os acontecimentos. A subjetividade
não está na encenação mas na reprodução.”
(Robert Drew) “O mais importante é transmitir o
sentimento de participação no acontecimento.”
(Richard Leacock). Se cito Leacock e Drew, é porque
suas idéias correspondem exatamente àquelas
que vou exprimir. Essas idéias nasceram da prática,
e as reflexões – diversas e numerosas – sobre seus
filmes me confortam quanto a essa convicção.
Devemos pular o estágio de procurar pretextos, o
que sempre foi útil na produção de filme. Devemos
chegar ao que tem sido o conteúdo da arte desde o
começo do mundo – a vida humana. A vida em si
deve se tornar um pretexto e o conteúdo do filme ao
mesmo tempo. A forma que assume, sua duração e
a maneira que se desenvolve.
Estou me referindo aqui ao filme sem qualquer
convenção artística. Em vez de falar sobre a realidade
– ele deve falar de meios dela. Em vez de comentários
do autor – deve ser uma relação de parceria
entre o espectador e o produtor. […]
A teoria da dramaturgia do real leva a conclusões
óbvias – o filme feito por meio de implementação
conseqüente dessa teoria pode ser imaginado
perfeitamente. Será um filme psicológico sobre
um homem, um filme com ação estritamente ficcional,
realizado pelos meios do método estritamente
documental. Esse filme vai concorrer com
os filmes de westerns, melodramas, policiais, psicológicos
e dramas. Não vai substituir Welles ou
Fellini na arte do cinema, mas vai substituir muitos
realistas. Uma vez que a realidade, que freqüentemente
nos pegamos descobrindo, é mais
melodramática e dramática, trágica e cômica. É
cheia de surpresas e regularidades, conflitos psicológicos
e o curso, de onde pensamentos e
reflexões resultam, indo muito além da imagem
fotografada ou do som gravado.
“Na busca incessante pelo sentido das coisas, sua
essência e a verdade, encontramos numerosas
decepções, mas devemos sempre começar a fazer
de forma nova, não apenas para os propósitos em
si mas pelo simples modo de conquistá-los (Evald
Schorm)...” (1968).
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Excerto da monografia de fim de curso, sob a orientação do
professor Jerzy Bossak, do departamento de cenografia da
escola de cinema de Lódz, 1968. Publicado em Film na swie
no 3-4 pp. 388-389], 1992.
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