Retrospectiva Internacional: 10 Documentários que mudaram o Mundo
Filmes da Mostra
A Questão Secundária:
Documentários que Mudaram o Mundo
Documentários que Mudaram o Mundo
Falar da visão e discernimento que o cinema documental
traz para os problemas sociais e políticos
é muito salutar e importante, mas não deixa
de ser algo secundário. A questão principal é se
respondemos ao documentário como obra de
arte. Podemos nos interessar por filmes de ficção,
como os de Ousmane Sembene, por exemplo,
não apenas pelo fato de retratarem a condição
da mulher africana na sociedade pós-colonial,
mas porque os filmes desse diretor senegalês são
mesmo excelentes. Não assistimos a um filme de
Bergman apenas para observar a sociedade sueca
na década de 60. É lógico que o cinema de Sembene
revela muito sobre o seu meio social, as estruturas
chauvinistas de poder e os códigos locais
de vestimenta, assim como os filmes de Martin
Scorsese retratam Nova York. Só que este não é
o ponto central dos filmes desses diretores. Defendo
veementemente a idéia há anos e já argumentei
em várias ocasiões que a maneira como o
mundo – alheio a essa questão primordial – responde
ao documentário é, na maioria das vezes,
pela forma.
Ainda assim, para a curadoria da mostra 10 Documentários
que Mudaram o Mundo, dei uma
guinada de 180º. Coloquei de lado as questões
estéticas e me concentrei numa pergunta secundária
e empírica: quais filmes comprovadamente
tiveram um impacto social, legislativo e
político na época em que foram lançados? Durante
a seleção, deixei-me levar pela indefinição
do que é um filme e incluí até filmes para TV ,
mas tomei a decisão de não cometer o pecado da
maioria dos programadores de documentários
para festivais: o anglocentrismo.
Desta forma, da Venezuela e Irlanda, mostraremos
A Revolução Não Vai Passar na TV (Kim
Bartley e Donnacha O’Briain, 2003); do Japão,
há Minamata: A Vitória das Vítimas (Noriaki
Tsuchimoto, 1972); dos EUA, Tiros em Columbine
(Michael Moore, 2002) e A Tênue Linha da Morte
(Errol Morris, 1988); da Inglaterra, Morte de uma
Nação: A Conspiração Timorense (John Pilger
e David Munro, 1994), BBC – Relatório Etiópia
(Michael Buerk e Muhammad Amin, 1984) e
McDifamação (Franny Armstrong, 2005); da
Alemanha, temos O Triunfo da Vontade (Leni
Riefenstahl, 1935); da França, A Dor e a Piedade
(Marcel Ophuls, 1967) e do Irã, Em Nome da
Liberdade (Hussein Torabi, 1980).
A Revolução Não Vai Passar na TV é um dos
testemunhos mais impressionantes sobre a
América Latina desde A Batalha do Chile de
Patricio Guzman. Muitos acreditam
que a utilização da mídia pelo governo
de Hugo Chávez,
como parte de sua estratégia política, deve-se
à experiência do presidente venezuelano em
participar e assistir a este filme, que não foi
feito com a intenção de mudar a Venezuela,
mas acabou por fazê-lo. O filme épico Minamata,
do diretor Tsuchimoto, acompanha o
intenso processo judicial movido por pescadores
locais contra o conglomerado japonês
Chisso por poluir as águas da Baía Minamata
com mercúrio. Um documentário apaixonante
e original, sua cena clímax é uma das mais tocantes
da história do cinema mundial. A Chisso
foi obrigada a mudar suas operações em função
dos protestos dos moradores de Minamata.
É do conhecimento de todos que, após Tiros
em Columbine, a rede varejista estadunidense
Kmart deixou de comercializar um certo tipo
de munição – um pequeno mas significativo passo
contra a onipresença das armas nos Estados
Unidos. A Tênue Linha da Morte, o documentário
que ajudou o sem-teto texano, Randall Adams, a
escapar da sentença de morte, é um libelo contra
a injustiça e o abuso da lei. A repercussão do
documentário
A Conspiração Timorense foi tão
grande que desencadeou a eventual liberação do
Timor Leste do domínio da Indonésia em 1999.
Após assistir ao documentário Relatório Etiópia,
de Michael Buerk, na BBC, o roqueiro irlandês
Bob Geldof concebeu o Live Aid, que melhorou
e provavelmente salvou a vida de centenas de
milhares de africanos. A cadeia de restaurantes
McDonald’s retirou sua publicidade
das escolas,
fruto de uma ação legal contra a empresa julgada
no Tribunal Europeu de Direitos Humanos,
retratada em McDifamação. Apesar da alegação
em contrário, o marketing da era Hitler promovido
pela diretora Leni Riefenstahl em seus
documentários durante os anos 30 tem em O
Triunfo da Vontade o seu apogeu. Segundo os
historiadores, o filme ajudou a consagrar a Alemanha
como potência reavivada por seu Fuhrer
psicótico. O documentário A Dor e a Piedade
embotou o senso de ufanismo pró-guerra da
França durante a II Guerra Mundial, ainda que
tardiamente, uma vez que o filme permaneceu
proibido na TV francesa por mais de uma década.
Exibido todos os anos pela TV iraniana, Em
Nome da Liberdade reforça o aparente triunfo
da revolução de Khomeini em 1979.
Os documentários sobre a Venezuela, Alemanha,
Irã e França mudaram os rumos dessas nações, ao
lançarem um olhar sobre o passado para entender
o presente. Os três filmes retratando a luta
contra as grandes corporações – McDonald’s,
Chisso e Kmart – são parábolas da batalha entre
Davi e Golias. O cineasta escocês John Grierson
criou o filme documental
como uma força
social da esquerda, mas os exemplos iraniano e
alemão são obras essencialmente de direita. A
Conspiração Timorense e o Relatório Etiópia são
expressões televisuais poderosas do liberalismo
pós-colonial.
Ao escrever esta introdução, percebo o que deveria
ser óbvio: que embora estes filmes tenham
sido selecionados por seu grande impacto social,
o impacto é explicado em parte pela via estética.
O diretor francês Claude Lanzmann descreveu
a inesquecível cena do julgamento no filme Minamata,
em que representantes
da comunidade
enfrentam os diretores da Chisso e empurram a
câmera de Tsuchimoto, como “sem precedentes
na história do cinema mundial”. Lanzmann fala
da “beleza desoladora e enigmática” da cena de
abertura – um barco de pesca no mar.
O filme de Michael Moore é uma mistura situacionista
da indignação moral de John Pileresque,
entremeado com umas pitadas da sátira dos
Simpsons e um humor ridiculamente exagerado
e irreverente. O filme de Leni Riefenstahl tornouse
famoso por sua investida na Gesamtkunstwerk
wagneriana, mas muito de sua obra pode ser compreendida
como produto de uma imaginação
exaltada, monotonal e erótica. O documentário
A Tênue Linha
da Morte é uma mescla de Robert
Siodmak e programas de crime na TV . No filme A
Dor e a Piedade, Marcel Ophüls devassa a colaboração
dos franceses com o nazismo, embalado por
canções de Maurice Chevalier e clipes de vídeos. O
diretor descreve
o documentário como um “hino
de amor à França”, um estado de ser lubitscheano
em que a situação é “desesperadora, mas não séria”.
Rodado em 35mm, com gruas e movimentos virtuosos
de câmera, o documentário Em Nome da
Liberdade faz a Revolução Iraniana parecer um
filme de Spielberg.
A concepção estilística destes filmes e seu inesperado
distanciamento tonal, barroco, film noir,
médio-europeu, satírico, épico ou mítico do esperado,
das normas típicas do cinema documental
griersoniano, sem dúvida explicam porque os documentários
desta seleção marcaram tanto as pessoas,
seja pela anarquia de imagens e fatos sociais, seja pelas
transformações sociais de impacto mundial que
retratam. Até mesmo o documentário de Michael
Buerk sobre a Etiópia teve um efeito devastador, em
parte por seu estilo direto.Anos após ter sido exibido
pela BBC, o editor de assuntos mundiais da emissora,
John Simpson, escreveu que foi justamente a
frieza e o distanciamento emocional do diretor em
relação ao filme que permitiu que os espectadores
reagissem de forma tão passional aos fatos.
Se estes cineastas buscaram mudar o mundo ou
o fizeram de forma não intencional, a diversidade
formal desta seleção para o É TUDO VE RDADE
mostra que o documentário é menos um gênero
(subproduto) do cinema, do que algo como uma
megalópole cinematográfica, onde vários gêneros
e linguagens do filme convivem e interagem.
Mark Cousins
Curador
Apoio do:
British Film Institute, British Council, Instituto Goethe
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