RETROSPECTIVA BRASILEIRA - COUTINHO: O CAMINHO ATÉ “CABRA”
O Caminho Até "Cabra"
O IMPACTO RENOVADOR de "Cabra Marcado para
Morrer" (1984) de Eduardo Coutinho sobre o documentário
brasileiro, sobretudo por sua reflexividade, pareceu
durante ao menos uma década e meia que estigmatizaria
seu realizador como mais um cineasta lembrado por um
único e grandioso filme. A auto-reinvenção de Coutinho a
partir do final de "Santo Forte" em 1999, com a consolidação
do dispositivo de seu "cinema de conversa", colocou
em suspenso qualquer balanço precoce. A nova guinada
em 2007, com "Jogo de Cena", alterou mais uma
vez o tabuleiro, tornando ainda mais complexo qualquer
diagnóstico sobre o caso Coutinho no cinema brasileiro
contemporâneo.
Depois de um longo período fora de circulação pela ausência
de cópias em bom estado, o restauro digital de
"Cabra" pela Cinemateca Brasileira devolvem-nos o filme
com o mesmo viço de sua retumbante estréia no
Brasil do ocaso da ditadura militar. Não haveria melhor
oportunidade para reexaminar a própria obra e o processo
de formação do Coutinho documentarista até a
cristalização de seu primeiro clássico.
A retrospectiva especial "O Caminho Até 'Cabra'", com
dois debates e uma série de projeções, teve o privilégio
de contar com o próprio Coutinho como um co-curador
virtual. As duas mesas-redondas, uma em São Paulo,
outro no Rio de Janeiro, reúnem os principais parceiros
do cineasta na ressurreição há três décadas do projeto "Cabra", originalmente ficcional e interrompido pelo governo
militar de 31 de março de 1964, assim como os
responsáveis pelo restauro.
Diversas vezes Coutinho datou sua conversão ao documentarismo
na sua experiência com a primeira fase
do Globo Repórter nos anos 1970, marcada então pela
parceria com a produção independente, como pioneiramente
recuperou uma mostra especial organizada pelo
É Tudo Verdade de 2002 com curadoria de Beth Formaginni.
Daquela produção, ele mesmo destaca os quatro
títulos selecionados para este ciclo: "Seis Dias de Ouricuri"
(1976), "O Pistoleiro da Serra Talhada" (1977), "Theodorico, O Imperador do Sertão" (1978) e ""Exu,
Uma Tragédia Sertaneja" (1979). Incluído neste ciclo, o curta "Coutinho Repórter" (2010), de Rená Tardin, apresenta
um resumo dessa experiência pelo depoimento
do próprio cineasta.
"Cabra Marcado para Morrer" foi rodado essencialmente
entre fevereiro e março de 1981, com financiamento
da Embrafilme e direção de produção de Zelito Viana.
Um colega de Coutinho de seus primórdios cinemanovistas,
Eduardo Escorel, assumiu a montagem. Como o
próprio filme explicita, ao contrário do "Cabra" ficcional
de 1964, a nova versão foi realizada sem roteiro.
1962, João Pessoa, Paraíba. Uma equipe de cinema do
CPC da UNE, comandada pelo jovem Coutinho, filmou
um comício em protesto contra o assassinato do líder
rural João Pedro Teixeira. O registro pretendia resultar
um longa-metragem ficcional sobre a vida de Teixeira, projeto abortado pela onda repressiva posta em marcha
pelo novo regime autoritário.
1984, Rio de Janeiro. Eduardo Coutinho libertava-se
do fantasma de um copião preservado por vinte anos
em sua casa e na casa do cineasta David Neves. A ficção
tornava-se documentário e o filme sobre Teixeira
se transformava num filme sobre o filme interrompido
sobre Teixeira, mas também num filme sobre o impacto
repressor e socialmente desintegrador da ditadura,
e ainda num filme sobre o cinema como preservador
da memória – para ficar em apenas três de seus níveis
de leitura.
Outro marco do documentário moderno ajuda-nos a
contextualizar a concepção de "Cabra" por Coutinho.
Ele mesmo lembra o impacto de "Crônica de um Verão"
(1961) de Edgar Morin e Jean Rouch, a obra inaugural
do Cinema Verdade que assistiu no calor da hora, mas
o descarta como referência direta durante o preparo de
"Cabra". "Inconscientemente, pode ser", reconhece contudo,
diante das evidentes rimas entre os dois filmes,
como a explicitação tanto dos processos de filmagem
quanto das relações entre cineasta e personagens.
Nada que surpreenda. "Cabra Marcado para Morrer" é
dessas raríssimas obras que sintetiza a história do gênero
que o precedeu e adianta a história que viria – e, ainda hoje, a que virá.
Amir Labaki
Filmes da Mostra
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Cabra Marcado para Morrer
EDUARDO COUTINHO (BRASIL / BRAZIL, 1984)
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Crônica de um Verão
JEAN ROUCH, EDGAR MORIN (FRANÇA/ FRANCE, 1959)
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Coutinho Repórter
RENÁ TARDIN (BRASIL / BRAZIL, 2010)
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Exu, Uma Tragédia Sertaneja
EDUARDO COUTINHO (BRASIL / BRAZIL, 1979)
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O Pistoleiro de Serra Talhada
EDUARDO COUTINHO (BRASIL/ BRAZIL, 1976)
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Seis Dias de Ouricuri
EDUARDO COUTINHO (BRASIL / BRAZIL, 1976)
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Theodorico, O Imperador do Sertão
EDUARDO COUTINHO (BRASIL / BRAZIL, 1978)
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