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    Edição 2000


Retrospectiva
Frederick Wiseman





Entrevista

Michael Tobias: O que o levou a começar a fazer documentários?

Frederick Wiseman: Não sei responder a essa pergunta. Quando eu morava em Paris, em meados dos anos 50, fiz muitos filmes de 8mm sobre feiras de rua. As experiências cotidianas sempre me interessavam e eu procurava encontrar maneiras de escrever sobre elas ou de filmá-las. Eu achava que se pudesse captar o dia a dia em filme, teria seqüências de drama, comédia, tristeza e tragédia, e que seria possível criar filmes documentários dramáticos com esse material. No início dos anos 60, eu vi alguns dos documentários sendo feitos nos Estados Unidos. Descobri que alguns cineastas estavam começando a fazer isso e que não havia motivo nenhum para que eu não tentasse também.

MT: Que filmes específicos foram marcantes para você?

FW: Havia um filme de Jim Lipscomb que, às vezes, é conhecido como Football, e, outras vezes, como Mooney vs. Fowl. É sobre dois times colegiais de futebol americano que estão se preparando para a grande decisão em Miami.

MT: O que mais te interessava no filme?

FW: Eu vi que alguém estava trabalhando com uma técnica que eu poderia adaptar aos meus interesses. Muitos desses primeiros filmes documentários com o som sincronizado - não Mooney vs. Fowl, mas outros - seguiam uma só pessoa ou um só tema. O que me interessava era - e não sei por quê - fazer filmes onde o local seria o astro, e não um indivíduo. O resultado daria uma idéia da vida institucional ou de algum aspecto da vida comunitária, sem as limitações de seguir uma só pessoa. Ao ter uma visão intensiva de um determinado local, existiria a possibilidade de encontrar traços de questões mais genéricas.

MT: Você achava que existia um espaço no documentário que seria significativamente diferente do que as ficções que você havia visto?

FW: Quando você tem muita sorte num filme documentário, consegue fazer seqüências que somente um grande escritor poderia inventar. No documentário, se você as encontra e reconhece como tal, pode utilizá-las. Mas você não as escreve da mesma maneira que um escritor as inventa. Os avanços tecnológicos do final dos anos 50, principalmente as câmaras portáteis e o som sincronizado, trouxeram a possibilidade de registrar qualquer situação onde houvesse iluminação suficiente.

MT: Fale sobre o seu primeiro filme.

FW: Titicut Follies.

MT: Por que esse filme?

FW: Bem, eu era professor de Direito e estava dando um curso de medicina legal. Estava procurando fazer com que a matéria fosse mais interessante, tanto para mim como para os alunos. Aí, eu comecei a levá-los para os tipos de lugares onde os seus clientes poderiam acabar ficando. Eu estava lecionando na Faculdade de Direito da Universidade de Boston e, naquela época, muitos dos alunos se tornaram advogados criminalistas de defesa, promotores distritais assistentes ou promotores federais assistentes. Eu achei que os alunos deveriam ter uma idéia mais realista de como funcionava o sistema judiciário criminalista. Não apenas na teoria, como descrito nos livros ou nas decisões nos tribunais de recurso, mas na prática: visitando as prisões, os julgamentos criminais, os sanatórios e os manicômios judiciários. Um dos lugares onde levei meus alunos foi a Manicômio Judiciário de Bridgewater. Quando resolvi parar de dar aulas e começar a fazer documentários, como eu já conhecia Bridgewater, achei que seria um ótimo tema.

MT: Quantos anos você tinha quando fez esse filme?

FW: Eu tinha 36 anos.

MT: E qual foi a reação a Titicut Follies?

FW: A reação da crítica a Titicut Follies foi muito boa, mas o filme foi banido por 25 anos.

MT: Como, banido?

FW: Inicialmente, a Suprema Corte do Estado de Massachusetts baniu o filme de qualquer tipo de exibição e mandou destruir o negativo. No recurso, a mesma Corte decidiu que eu poderia mostrar o filme, mas somente para platéias exclusivas de médicos, advogados, legisladores, pessoas interessadas em dar assistência a esses detentos e alunos desses campos e dos correlatos. Nunca para o público curioso em geral. Eu poderia exibi-lo somente para pessoas nessas categorias, com a condição de que eu daria um aviso prévio de uma semana, à Corte e à Promotoria Geral do Estado, sobre qualquer exibição, e, depois dela, entregaria uma declaração garantindo que, de acordo com os meus conhecimentos, todos que viram o filme se classificavam entre aqueles permitidos a assisti-lo. Havia muita restrição.

MT: Isso é realmente espantoso.

FW: Finalmente, essa condição foi tirada no ano de 1991, quando um outro juiz do Estado de Massachusetts determinou que o filme tinha a proteção da Primeira Emenda.

MT: Mas, durante todos aqueles anos, você estava lutando em nome da Primeira Emenda, certo?

FW: Sim. O caso foi para a Suprema Corte dos Estados Unidos, que o rejeitou certiorari, por 4 a 3. Durante vários anos, não havia nada que eu pudesse fazer. Então, em meados dos anos 80, eu movi outra ação para sustar o mandado de segurança e, em 1991, de fato, o mandado foi suspenso.

MT: Havia outros cineastas documentaristas, naquela época, que tiveram experiências semelhantes?

FW: Que eu saiba, não.

MT: E como é que você encara o fato de que você foi separado dos outros?

FW: Era politicagem. Algumas pessoas no governo do Estado de Massachusetts ficaram envergonhadas pelo filme. Elas levantaram a questão do direito da privacidade dos detentos, como uma maneira de procurar bloquear sua exibição. O Estado alegava que eu havia invadido a privacidade dos detentos. Eu tomava a posição de que era o Estado que tinha um conflito de interesses. O conflito era de que o Estado tinha a responsabilidade pelas condições mostradas no filme e, ao mesmo tempo, essas pessoas estavam aproveitando-se do direito de privacidade do detento para fazer com que o público em geral ignorasse essas condições. O lado pior do argumento contra Titicut Follies era de que algumas pessoas, que eu achava que fossem meus amigos, voltaram-se contra o filme. Algumas pessoas simplesmente se recusaram a falar comigo, ou não defenderam o filme, embora gostassem dele. Elas temiam que houvesse algum tipo de problema pessoal ao serem associadas comigo ou com o filme. Esse tipo de traição pessoal me perturbava muito mais do que o aspecto público. Eu achava que o comportamento do Estado era cômico.

MT: Como é que você compara aquela época, com as decisões da Suprema Corte e o ambiente em que os documentaristas trabalhavam, com os dias de hoje?

FW: Eu acho que as questões já foram discutidas nos tribunais de forma mais ampla e já tivemos muitos outros processos envolvendo a Primeira Emenda e questões semelhantes - o exemplo mais destacado é o caso dos documentos do Pentágono. Porém, o princípio de proteção da Primeira Emenda foi estabelecido em meados dos anos 60, com o caso New York Times vs. Sullivan. Descobriram que o direito do público de ter conhecimento das coisas era protegido pela Primeira Emenda. Entretanto, foi só depois do caso dos documentos do Pentágono que escritores, documentaristas e jornalistas tiveram uma proteção mais ampla aos seus esforços de dar cobertura sobre as atividades do governo.

MT: Claro, e ganhamos o Ato de Liberdade da Informação, que deu muita ajuda.

FW: Sim.

MT: Muito bem. Agora, fale do período pós-Titicut Follies, no início de sua carreira. Você passou a fazer muitos filmes sobre as instituições sociais americanas, como Zoo e High School. Por que essa preferência?

FW: É o que gosto e é interessante. Eu posso viajar e pensar sobre assuntos diferentes o ano inteiro.

MT: Você faz um filme por ano?

FW: Faço. Desde 1966.

MT: E a maioria deles é independente?

FW: São todos independentes.

MT: Então, você nunca recebeu financiamento adiantado de uma rede de comunicações ou de uma distribuidora?

FW: Na verdade, não. São independentes, mas eu costumo receber recursos do PBS (Public Broadcasting Service) e da CPB (Corporation for Public Broadcasting). Porém, nunca recebo todos os recursos dessas instituições. O dinheiro vem de uma combinação de fontes.

MT: Como é que você faz para levantar recursos dessa forma?

FW: Existe um número limitado de fontes no mundo que conta com fundos de apoio a documentários. E todos os cineastas documentaristas procuram as mesmas fontes: a CPB, o PBS, o National Endowment for the Arts (NEA) e o National Endowment for the Humanities (NEH). Também, periodicamente, há recursos de uma ou mais redes européias. Existem algumas fundações que fazem doações.

MT: Quando está realizando um filme, você trabalha em tempo integral, quer dizer, durante o ano todo?

FW: Sim. Só faço isso. Mais algumas palestras em universidades.

MT: Parece que o seu filme atual (Public Housing) trata da questão da habitação pública. Outra instituição social. Você já fez algum filme que dá enfoque a um indivíduo?

FW: Bem, eu fiz um filme de ficção (Seraphita´s Diary). Mas todos os documentários foram sobre instituições públicas e privadas.

MT: Fiquei intrigado com um de seus filmes recentes, La Comédie Française. Parece que você foi o primeiro a receber permissão para tratar desse tema.

FW: Correto.

MT: Como foi que aconteceu?

FW: Eu já estava com a idéia há muito tempo e alguns produtores franceses entraram em contato comigo. Eu fui falar com o diretor da Comédie Française e ele me autorizou.

MT: Tão simples, assim! É claro que seu trabalho é um testamento da sensibilidade; da capacidade de realmente penetrar e revelar a instituição... Quando você está trabalhando com toda uma paleta de indivíduos, onde você tem um quadro grande de vozes diferentes (almas diferentes, para assim dizer), você preza qualquer técnica preparatória específica? Por exemplo, quando fiz uma pergunta semelhante para Albert Maysles, ele disse que nunca faz um trabalho de pesquisa.

FW: Nem eu. Eu geralmente passo um ou dois dias no local. Na Comédie Française, eu fiquei mais tempo, porque tive que estar lá para lidar com as várias questões ligadas à autorização. Mas, normalmente, passo apenas um ou dois dias, porque gosto de ser surpreendido. Nenhum dos eventos no filme é treinado ou repetido. Para mim, todo dia é o primeiro dia, do ponto de vista da surpresa. Não gosto de estar envolvido em pesquisas quando algo espetacular pode estar acontecendo... e eu não estaria preparado para captá-lo.

MT: Mas tantos cineastas insistem no fato que a chave é pesquisa, pesquisa, pesquisa. E que jamais podemos fazer pesquisa demais.

FW: O meu estilo depende muito dos meus instintos. Eu meramente "sigo o meu nariz" e acumulo muito material rodado. Depois, resolvo tudo na edição. Eu não resolvo tudo antes.

MT: Qual a proporção normal das suas filmagens?

FW: De 30 para um.

MT: Então, não é muito grande.

FW: Não.

MT: Isso é normal. Com os tipos de filmes que você faz, é óbvio que você tem um faro muito sensível.

FW: Até agora.

MT: Qual o seu prognóstico com relação ao documentário verdadeiro?

FW: Não sou bom em fazer generalizações sociais. Eu acho que sempre haverá algum interesse, um interesse limitado. Sempre vão existir pessoas que querem fazer documentários. Não posso dizer mais do que isso, porque simplesmente não sei.

MT: Existe um papel para o documentário? No seu caso, por exemplo, para realçar os abusos de um sistema?

FW: Eu não acho que é isso que eu faço. Eu não me vejo como uma pessoa que faz filmes exposé. Embora o Titicut Follies seja considerado um filme exposé, não é somente isso, e, com certeza, meus outros filmes não foram desenvolvidos como simples exposés. Eu acho que é importante mostrar toda a gama da atividade humana possível - boa, ruim e indiferente. Eu acho que o tema é a experiência comum.

MT: O que é isso, o que é comum?

FW: É apenas a experiência cotidiana das pessoas que me interessa, em todos os temas diferentes. Todo mundo passa por um hospital um dia. Todo mundo freqüentou o colégio. De 40 a 50 milhões de pessoas serviram nas Forças Armadas durante os últimos 50 anos, etc..

MT: Então, para você isso significa simplesmente explorar o cotidiano?

FW: É uma exploração do comportamento humano nas suas várias manifestações, formas e expressões.

MT: Carl Jung tinha uma expressão maravilhosa, onde fazia referência ao heroísmo da vida cotidiana.

FW: É uma ótima expressão.

MT: Para você, o que seria uma grande resposta a um dos seus filmes? Ou, em outras palavras, o que é que você espera que as pessoas ganhem com os seus filmes?

FW: Nada. Espero que gostem, mas não penso muito nisso.

MT: Quando é o momento especial para você?

FW: Quando eu vejo que o filme está se formando. Nem tudo na edição é emocionante. Sempre há três ou quatro meses de trabalho chato, juntando o material em algum tipo de forma útil. O momento mais emocionante vem durante os últimos dois meses de edição. Eu começo a sentir o filme e trabalho para encontrá-lo. Isso é muito emocionante.

MT: Seus filmes tendem a ser mais longos do que a maioria. Há algum motivo específico para isso?

FW: Sim, eu tenho muitas obrigações. Existe uma série de responsabilidades entrelaçadas - com o tema, com as pessoas que me autorizaram a fazer o filme e comigo mesmo.

MT: O que quer dizer "responsabilidade"?

FW: Isso significa que os temas geralmente são complexos e eu acho que eu seria irresponsável se eu fosse encurtá-los para ceder às exigências de uma rede de comunicações. O meu filme mais curto tem 73 minutos e o mais comprido tem seis horas de duração. Não são seis horas para satisfazer algum desejo de provocar, mas porque eu achava que era a duração correta para o material que tinha. Esse foi Near Death. E o filme de 73 minutos foi High School.

MT: Picasso disse, uma vez, que uma obra de arte é a soma total da destruição. Ele disse isso logo depois de completar aquela maravilhosa obra ilustrando um touro anatomicamente correto, em três linhas. Ele já havia feito incontáveis rascunhos de touros, incorporando centenas de linhas, para acertar tudo. Com o tempo, ele conseguiu refinar o animal. Você tem qualquer senso de estar refinando o filme? Quer dizer, quando você está no processo da edição e está enfocando o seu tema, como é que uma parte é cortada e outra entra no filme?

FW: A edição é uma combinação esquisita da racionalidade, da não-racionalidade e do instinto. Todo editor está constantemente tomando decisões. A edição é uma função da interação entre seus olhos, seu cérebro e sua mão.

MT: Você faz todo o trabalho de edição no próprio filme?

FW: Sim.

MT: Já fez vídeo?

FW: Não.

MT: Será que fará vídeo um dia?

FW: Não, se eu puder evitar.

MT: Por quê?

FW: Não gosto da sua aparência.

MT: E com o advento do digital?

FW: Não sei o que vai acontecer com isso. Eu gosto da idéia de manusear o filme e não tenho dinheiro para comprar um Avid. Nem acho que gastaria assim, mesmo se eu tivesse.

MT: Durante o ano, você tem uma pequena equipe que trabalha com você?

FW: Não. Eu tenho um assistente que prepara as filmagens para estudo no fim de cada dia e me ajuda nas preparações para a mixagem. Eu mesmo faço toda a edição.

MT: E parece que você tem opiniões fortes quanto à música nos seus filmes.

FW: Bem, não são exatamente opiniões fortes. Eu não utilizo música que não foi gravada no contexto da realização do filme.

MT: Por quê?

FW: Porque eu gosto de conseguir representar que tudo que aconteceu foi durante as filmagens.

MT: Quando dirigindo as filmagens, você pede refilmagens?

FW: Não.

MT: E, quando você está dirigindo, existe qualquer grau de orientação?

FW: Nada.

MT: E a filmagem é com uma câmara só?

FW: Correto.

MT: Qual a câmara que você geralmente utiliza?

FW: Uma Aaton.

MT: E qual o tamanho da equipe nessas situações. Quantas pessoas?

FW: Três.

MT: Somente três? No estilo de Ansel Adams...

FW: Sim. É necessário ficar com uma equipe pequena, porque não quero interferir no que está acontecendo. E, também, preciso estar pronto para me deslocar rapidamente. Fazer o filme documentário é um esporte e você precisa estar em forma.

MT: Um dia de filmagem para você tem quantas horas?

FW: De 12 a 14 horas.

MT: Sete dias por semana?

FW: Sete dias.

MT: E quanto tempo duram as filmagens? La Comédie Française, por exemplo?

FW: A filmagem em Paris demorou 11 semanas. Foi o período mais longo. Geralmente, demoro de seis a oito semanas.

MT: São dias estafantes.

FW: Com certeza.

MT: Você perde peso?

FW: Não. (E acrescenta - "Eu nunca perco peso em Paris.")

MT: Você assiste às filmagens anteriores, enquanto está prosseguindo com as filmagens diárias?

FW: Depois de mais ou menos o terceiro dia de filmagem, eu vejo essas filmagens toda noite.

MT: Existe um documentário que nunca realizou, mas que sente que tem que fazer?

FW: Não. Porque eu sempre acho cada tema interessante. Existem muitos bons temas.

MT: Será que existe qualquer coisa que você gostaria de voltar e revisar e olhar de novo?

FW: Claro. Quando eu vejo alguns dos filmes, eu vejo erros que cometi e que acho que não cometeria de novo.

MT: Quantos dos seus filmes estão à disposição agora?

FW: 30.

MT: Estão no formato de vídeo?

FW: Não estão disponíveis em vídeo, mas através de escolas e faculdades.

MT: Para os jovens aspirantes, que possuem um fascínio pelo documentário, o que você gostaria que considerassem, se estão pensando em fazer carreira nesse campo, ou quais os macetes que queria dar?

FW: Bom, vou responder com uma história. Há alguns anos, um jovem realizador de documentários, que estava para se formar em uma universidade tradicional, veio falar comigo. Ele tinha anotado todas as suas perguntas, o que me lisonjeou, e quando fazia a pergunta, ele escrevia as minhas respostas, o que me lisonjeava ainda mais. Sua última pergunta foi: "Se você fosse dar uma dica para um realizador de documentários, o que seria?". Eu disse: "Case-se com uma mulher rica." E ele escreveu minha resposta: "Case-se com uma mulher rica."

MT: É isso o que você fez?

FW: Não.

Entrevista publicada no livro "The Search for Reality: The Art of Documentary Filmmaking", de Michael Tobias
Michael Wiese Prod., Junho 1998, 400 páginas (site www.mwp.com)